Certa noite de 2023, o veterinário uruguaio Paul Raad encerrava sua jornada de trabalho organizando materiais em seu quarto na pousada Piuval, a cerca de 100 km de Cuiabá, MT, quando notou uma estranha movimentação do lado de fora. Na hora, pegou a câmera e discretamente saiu da acomodação, tomando todo cuidado para não assustar a visitante, que também é o centro de suas pesquisas. Apontou a lente, disparou cliques rápidos e, contando também com o auxílio de uma armadilha fotográfica estrategicamente posicionada, capturou o exato momento em que uma onça-pintada se jogava sobre uma capivara na área da pousada (veja abaixo). 336q2q
Desde julho de 2022, Paul Raad cursa o mestrado no Programa de Pós-graduação em Animais Selvagens da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, campus Botucatu. Orientado pelo docente Felipe Fornazari, o uruguaio busca compreender o papel ecológico que os felinos desempenham no ecossistema do Pantanal, a partir de estudos epidemiológicos. Devido a sua atuação na região, as funções de Raad se expandiram para além dos estudos diretamente ligados à pesquisa, e atualmente ele também exerce o cargo de coordenador do Projeto de Coexistência Humano-Fauna da ONG Ampara Silvestre. O foco da iniciativa, que é financiada pela Ampara, é promover um melhor convívio entre fazendeiros e as onças, por meio de medidas antipredação, de monitoramento da população de onças e de educação ambiental.
O Pantanal é a maior zona úmida continental do mundo, e também o bioma brasileiro onde reside a maior proporção de espécies preservadas. Segundo levantamento realizado pelo Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade (ICMBio), dentre as mais de 1200 espécies que compõem a fauna pantaneira, 93,7% têm o risco de extinção avaliado como menos preocupante. Esses números contrastam com a baixa quantidade de unidades de conservação (UCs) efetivamente existentes na região. Segundo dados da World Wide Fund for Nature (WWF), uma das ONGs com as quais Raad desenvolve ações em parceria, apenas 4,4% do território estão sob esse regime de proteção. Os demais 95% são ocupados por propriedades particulares, e destas, 90% são destinadas à atividade pecuária.
Na complexa paisagem pantaneira, a criação de gado compartilha os mesmos terrenos que servem como área de agem para as onças-pintadas. O resultado é que, eventualmente, parte da criação é predada pelos grandes felinos. Essas perdas podem ocasionar dificuldades financeiras para os fazendeiros locais, o que leva também à morte de onças em retaliação. Segundo Ricardo Boulhosa, que preside a ONG Instituto Pró-Carnívoros, que atua no Pantanal, o conflito entre fazendeiros e felinos já é histórico e nunca será completamente solucionado. No entanto, ele acredita na possibilidade de diminuir a intensidade desses episódios, a fim de proteger tanto as atividades econômicas tradicionais dos pantaneiros como a vida das onças-pintadas, e tem desenvolvido ações de educação ambiental em parceria com Raad.
Apesar de ameaçadas, número de onças aumentou nos últimos anos
Segundo Boulhosa, a onça-pintada é o grande felino menos conhecido pela pesquisa científica. Esse desconhecimento dificulta que os estudiosos possam estimar e acompanhar as populações da espécie que residem no Pantanal, assim como as mortes que ocorrem por retaliação. As poucas informações de que os estudiosos dispõem provêm de avistamentos e de relatos fornecidos pelos próprios fazendeiros. “Nos últimos anos os pantaneiros têm notado um aumento no número de aparições de onças”, diz Boulhosa.
Esse crescimento da presença dos animais tem impactado diretamente o cotidiano da pousada Piuval, onde Raad fica hospedado nos períodos em que está no campo. A pousada fica a 10 km da cidade de Poconé, distante 100 km da capital Cuiabá, MT. “Desde 2017, os proprietários notaram que o número de onças nas proximidades vem aumentando”, diz Raad. “Hoje, alguns animais chegam a entrar no terreno da pousada e a transitar próximo às áreas onde ficam os quartos.”
O pantaneiro Eduardo Campos é proprietário da Piuval, e também de uma fazenda denominada Ipiranga. Interessado em entender o comportamento das onças e reforçar a segurança dos hóspedes — que hoje procuram a pousada em busca da emoção de ver ao vivo um dos grandes felinos —, Campos convidou Raad a se instalar na região e a usar a hospedaria como campo de testes e modelo para as técnicas de coexistência humano-fauna que ele desenvolve junto à Ampara.
As atividades do pesquisador uruguaio envolvem o levantamento populacional das onças e o monitoramento de suas atividades. Com esse objetivo, ele entrou em contato com outros proprietários de sete fazendas e três pousadas no entorno da Piuval para que pudessem, em conjunto, delimitar uma área com função de corredor ecológico. Os proprietários não podem matar onças no terreno do corredor, cuja área alcança 30 mil hectares (o equivalente a 30 mil campos de futebol). No terreno do corredor, Raad espalhou 60 armadilhas fotográficas, e graças a elas tem conseguido acompanhar as ações de, pelo menos, 20 onças-pintadas.